10/6/07

Mr Zão , Set 2007



“Processo Criativo e a Estruturação em Computador”: Intreview with Gonçalo Furtado
Bruno Zão
25 September 2007

1ª PARTE:
Bruno Zão: ]Mostra Draft da sua investigação sobre o processo criativo a Furtado]
G. Furtado: Parece interessante o título-tema e estrutura do trabalho [sobre a Prova Final para Licenciatura em Arquitectura]. Os casos de estudo também parecem bem seleccionados. Em suma fazer-se uma revisão dos estados da personalidade e psicológicos, e depois procurar aplicá-lo [capítulo 03] a uma cartografia de exemplos arquitectónicos precisos. Mas estender a paleta não só a edifícios mas a processos projectuais também me parece plausível.
Levantam-se outras questões-hipóteses. Primeiro a escolha do estado “limiar”, acho que assenta a análise no momento neutra Quando os estados psicológicos oscilam entre uma dimensão mais benéfica ou patológica, e essa gama pode ser tida em conta. A psique pode comportar vários estados; eu acho que as análises mais recentes até dizem que tudo coexiste simultaneamente mas em graus variados.
B. Zão: No livro “Como Tornar-se Doente Mental”, o autor diz que todos são potenciais neuróticos. Depende sempre do ambiente e do campo genético. Simplesmente alguns dependem mesmo daquele estado farmacológico. Por isso é que eu falo das neuroses e depois do caso psicótico. Esse já não está no estado limiar, já ultrapassou. Fala-se sobre a disfuncionalidade. A Arquitectura tem um lado característico que é cumprir programas e necessidades. Na Arte recorre-se a elementos psicotrópicos. Muita gente não percebe mas gosta. Na Arquitectura não pode acontecer, pois não se pode fazer “o que nos dá na veneta”. Tem que ter um aspecto muito concreto, muito real. [sobre este tema] Não consigo dar nenhum exemplo em concreto. Mas é possível de encontrar.
G. Furtado: Então podem cartografar-se na dimensão da arquitectura vários estados psicológicos, e que podem oscilar dentro de uma gama. Ou como tu referias, já de limite; e então precisa de uma correcção... seja por psicoterapia, psicotrópicos, etc. Mas pode remeter no que á Arquitectura diz respeito para vários momentos – das fases do processo criativo até ao edifício.
Devo alertar que relativamente à premissa do trabalho, pode ser uma atitude muito “moderna”, que alguém se coloque numa posição de analisador e terapeuta. Um arquitecto terapeuta de outro arquitecto? Mas acredito que este cruzamento da arquitectura como outras áreas, como a psicologia, pode ser produtivo.
Então teríamos os do tipo naturalistas, os não sei quantos, enfim varias distinções como entre Psicologia, Psiquiatria, Neurologia... e entre atitude paternalista de operar sobre o outro, apoiar a que o outro opere, recusar operar […]
Em resumo, seja ao nível do indivíduo ou do arquitecto-arquitectura, parece-me que esses estados encontram-se em várias gradações e em variadas dimensões. Sendo que alguns deles podem estar mais presentes e mais visíveis,
B. Zão: Normalmente, o arquitecto consegue usar a Atitude Criativa noutros projectos.
G. Furtado: Se calhar não tem nada a ver com o teu trabalho, mas estas manifestações revelam-se desde logo no processo criativo durante o acto projectual; ainda que também na concretização material do edifício.
B. Zão: Eu já acabei o da Casa da Música [capítulo], e agora estou a começar o da Faculdade [de Arquitectura]. Há imensos desenhos do Siza, imensas hipóteses. Hipóteses que não faziam sentido nenhum, que o conselho não concordava e então foram abandonadas, em que depois foi criada esta [a construída]. Houve uma intensidade enorme ao nível do envolvimento com o projecto. Uma obsessão, um desenho obsessivo, sempre a trabalhar, sempre a produzir, sempre a controlar.
G. Furtado: Eu ainda estendia isso mais. Do objecto á performance do objecto... como é que estes estados psicológicos se continuam a manifestar na vida do edifício.
B. Zão: Obsessivo-Compulsivo é um critério. O arquitecto [Siza] é um pedagogo e quer incutir nos outros a sua ideia. E consegue isso.
G. Furtado: Exactamente. Claramente. Mas pronto, avancei que duas coisas. Uma era a gama dos estados, a segunda, é a sua presença - do arquitecto até à performance do objecto. Uma terceira coisa que eu identifico é que tens uma tipificação do processo em Arquitectura muito convencional. Em que há a aproximação ao terreno, o projecto, a construção, o edifício; e paralelamente a identificação do esquiços, a maquete etc. Parece-me tudo muito encadeado, sequencial.
B. Zão: Quero encarar isto como “fases”, ou como o professor propôs, “componentes”.
G. Furtado: Se calhar fará mais sentido.
B. Zão: Claro que esta será sempre a primeira [Conhecimento empírico] e esta a última [Decisão em obra], pois vão haver sempre problemas para resolver na altura da construção.
G. Furtado: Será sempre difícil para mim pensar relativamente a indagações tuas baseadas nesta estruturação hierárquica. Por outro lado as minhas respostas são obviamente opiniões pessoais e parciais,
B. Zão: A ordem está relacionada com o ensino aqui [FAUP]. Começamos com o nosso conhecimento, passamos para o desenho, depois a materialização trabalhando com as mãos [maqueta] e o uso do computador quando necessário.
G. Furtado: Outras coisas. Estavas a dizer que não existe precedentes de interesse arquitectónico nesta área. Vê por exemplo toda a análise do Rem Koolhaas, no “Delirious New York”. o êxtase etc.
B. Zão: Sim, sim. Eu estava a falar sobre as Atitudes Criativas Neuróticas.
G. Furtado: Isso; e esta ideia da obsessão, no desenho, é conversa comum.
B. Zão: E das mais respeitadas.
G. Furtado: É produzida, reproduzida e fomentada ao nível quase patológico. Reconheço que tem resultados reconhecidos e de grande qualidade. Por outro lado, no caso do Rem Koolhaas de que falava, ainda que distinto, também é ao nível promocional - mediático, de grande pujança. É interessante que os dois casos [Rem Koolhaas e Álvaro Siza] tenham uma presença tão forte na Cidade do Porto neste momento. Por isso, parecem-me a selecção dos casos de estudo interessante.
Calculo que haja uma consciência, talvez de ambos, da sua entrega incondicional ao projecto. Por exemplo no caso do Rem Koolhaas, penso que há uma consciência, sobretudo revelada pelos escritos dele, sobre este carácter histriónico na arquitectura dele. Portanto eu contradizia-te que [sobre a “inovação” total do teu interesse], que, no seguimento do que estamos a falar, referimo-nos a algo conhecido. Aliás, há “escritos” por ambos, de uma forma mais suave ou menos, onde tal é claro.
B. Zão: Uma das coisas que dita este tipo de manifesto é a consciência. Já existe desde sempre, mas era como o “oxigénio” quando não tinha nome, porém sempre existiu.
G. Furtado: Eu agora dava-te outra deixa. Eu estava a olhar aqui para o teu “Teorias e Manifestos” [o livro de Jencks e Kropf, pousado na mesa]... Há mais compêndios deste género. Eu diria o Leach, o Haus, a Ockman [ao nível da história, da cultura arquitectónica até 68], e depois pós 68. E depois há o da Nesbit até 99 ou coisa do género. Trata-se de readers-compêndios que revelam uma selecção das correntes, os acontecimentos, os textos mais importantes do período. Também revelam quais foram as linhas de pensamento que marcaram os vários momentos. Depois há o “Rethinking Architecture” do Neil Leach, que pega nos “cultural studies” para entender e repensar a Arquitectura. Eu diria que este conjunto, são os compêndios panorama gerais. Posso-te falar um pouco mais sobre o último autor, o Leach. No livro ele define várias linhas, autores de correntes de pensamento influentes que em algum momento escreveram sobre Arquitectura. Vai desde perspectivas marxistas, perspectivas fenomenológicas, perspectivas estruturalistas, até outras correntes. Uma das grandes ausências que constatávamos numa conversa que vai ser publicada era a psicanálise. Não há grandes autores desta que tenham escrito textos sobre Arquitectura. Mas veja-se ao contrário... muitos teóricos da arquitectura, na contemporaneidade em geral, viram essa área como promissora.
Vidler, Anthony Vidler, interesse na poética do Unheimlich não anda muito longe...termo germânico, que refere um estado simultâneo de familiarização e tremor. Vê também o conceito de sublime...e a deambulação entre a obsessão da ornamentação e a grandeza imensa da paisagem. […]
Também olhando para as tuas referências, há outros autores, tanto no campo teórico como projectual que estão marcados por este interesse.
B. Zão: Mas que influenciam?
G. Furtado: Influenciam pouco. Diria que se constituem como alternativas potentes. Parece-me que tens um corpo de trabalho excessivo; é importante que de alicerces para ao nível da introdução e conclusões, como da tua introdução. Se jogue mais...
Podia ser mais produtivo academicamente, eu acho que devias dar uma olhada a estes nomes etc. que te comento e desenvolver os teus temas com mais integração no corpus disciplinar que existe. Achei o título-tema interessante porque se encaixa numa linha de pensamento aonde há muito para explorar. Isto não trata da área psicanálise que falava, mas de qualquer maneira da área da Psicologia. […]
Há um impasse enorme no pensamento teórico em arquitectura, e por isso é que eu acho que como outras áreas essa se candidata como uma das potenciais correntes de pensamento. Depois da desconstrução, [recorda que em termos da critica pós-moderna, as correntes da superação do modernismo em Arquitectura, existiu não só o estruturalismo, mas subsequentemente correntes específicas pós-estruturalistas que estão já ao nível, não da distinção entre tipos de estrutura etc. ... Basicamente a desconstrução foi uma das última corrente, que levou ao “Digital Architecture”, etc. […]. Mas a desconstrução põe um problema... recorde-se que ela centra-se já não na anterior mera distinção significados significantes, mas no shifting signifier... Isto tem de certa forma também, algo a ver com aquela correcção que psicóloga que te esta ajudar a apoiar te fez privilegiando a ideia de percepção, pois as coisas não são codificadas rigidamente.
Na Arquitectura, o pós-estruturalismo vem de certa forma demonstrar... E mete muito em causa...
Também foi neste sentido que te fiz uns olhares quando falaste na questão da originalidade... Porque é que se trata de um termo discutível? Porque toda a autoria se relaciona como o status do arquitecto, apenas o reforço de um determinado entendimento do seu papel social... podemos significar a dialéctica, autoria, autoridade, tal como se ainda faz sentido falar nesses termos.
Na verdade, no caso da arquitectura, o desconstrutivismo foi algo “bluff”, pois raros dos autores contactaram realmente com as coisas do Derrida. Um formalismo tenso e ex Há aqui um termo qualquer que tu usavas que estava bastante forte - o “formalismo excessivo”. […] Há claro pelo menos alguns autores desta situação, que estavam a par das correntes pós-estruturalistas e que as usavam para superar a discursividade modernista, hierárquica, e questionar a reprodução do saber arquitectónico, da prática arquitectónica, da presença e da sua performance no campo social. No entanto, isto cria um impasse, toda esta ideia de um discurso sobre o discurso, do metadiscurso...cai frequentemente num nihilista. Relaciona-se um bocado como o que alertava mais atrás quanto a cartografia psicológica-tipo em Arquitectura. Metemos a Arquitectura na cama do psicanalista, e o psicanalista no armário... agora estende isto à questão de uma prática arquitectónica. Tinha de se declarar como doente e requisitar ajuda, e eventualmente, teria incapacidade ou revelaria consciência etc. Depois um psicanalista-arquitecto operava sobre a Arquitectura. […] É cíclico e é por isso que temos de fazer outro tipo de discursividade.
É no entanto certo que uma das ausências da teoria a explorar é a psicanálise. E isto pressupõe um outro tipo de território mas com consciência daquele que estou a alertar eventualmente. No teu caso concreto, estas a contactar com pessoas das outras áreas, tentar aprender os conceitos chave e adaptar o discurso para a Arquitectura. […]
Por outro lado, parece-me que no caso do estruturalismo [via linguística] muitos autores escreveram sobre arquitectura e estavam a marcar a produção cultural em geral, [nas letras, nas ciências sociais etc.] por isso nós estávamos em contacto de certa forma com essa forma de pensamento. No campo da psicanálise, parece-me que isso não acontece... embora como é sabido, os arquitectos são uma das classes que mais recorre a eles [risos].
B. Zão: Por detrás de um bom arquitecto está sempre um grande psicólogo.
G. Furtado: Possivelmente. Digamos então que se isso se verifica que estamos em permanente contacto com eles como estávamos com os estruturalistas que marcaram a Arquitectura até há uma década ou coisa do género [risos].
Quando o discurso das pessoas dentro da área coincide com a corrente de pensamento, deixamos a maior parte das vezes de sentar a arquitectura na tal cadeira de psicólogo, e tentamos é pegar nesse discurso para curar a Arquitectura. [risos] Provavelmente funciona, não sei. Mas é uma hipótese difícil de explorar.
Em resumo, partilhei-te na minha opinião algumas coisas que podes explorar na tua prova. Os graus entre estas coisas, i.e. a gradação e o nível entre as várias estados e não só o estado limiar, os vários módulos que tu tens no capítulo 03. O segundo aspecto é o faseamento do processo criativo. O terceiro é concentrares-te em objectos e não estender as práticas projectuais dos arquitectos [Álvaro Siza e Rem Koolhaas] à performance dos edifícios etc. A quarta é parecer que enunciavas que não existe, embora pense que existe tanto ao nível de projecto como da teoria, antecedentes. Os casos de estudo têm mais ou menos isso aludido, e no discurso corrente.
E depois estava aqui a tentar encaixar a minha investigação com o teu trabalho. O que é que isto significa? Há a consciência de certos produtores do discurso de Arquitectura e que este é caminhos a explorar. Estou a partilhar-te um entendimento que se calhar não tens consciência para entenderes melhor do que estas a tratar
B. Zão: Eu também tinha essa dúvida, sobre falar com o professor sobre a parte dos computadores. O que eu conhecia [do Arq.to Gonçalo Furtado] era teórico, mas pensei, vou tentar pois não é preciso uma resposta de um prático. Na prática, por exemplo a arquitectura do Gehry ao usar o computador no processo criativo para corrigir, para ver como é. No da Zaha Hadid também acaba por acontecer. E por isso é que era bom ter o outro lado do discurso.
G. Furtado: Estou aqui a ver algo... Estás em contacto com o Koolhaas?
B. Zão: Entrei em contacto com o relações-públicas [Ian Knikker] e deu-me uma resposta possível. Só que ele [Rem Koolhaas] como está numa fase a trabalhar na China…
G. Furtado: … e no Dubai.
B. Zão: Principalmente na Ásia.
G. Furtado: Entraste em contacto?
B. Zão: Arranjaram-me o material todo da Casa da Música. Foram impecáveis. Ele tentou [com Rem Koolhaas e com a Ellen van Loon], mas têm quarenta e tal projectos.
[interrupção da entrevista] [total: 32 minutos e 46 segundos]

2ª PARTE:

B. Zão: [sobre o uso do desenho e a maqueta no processo criativo] Essas são as mais pacíficas. A parte do computador é que eu estou mesmo com dificuldade. Por isso é que eu precisava da sua ajuda sobre o processo criativo.
G. Furtado: No que respeita às fases de arranque do projecto identificam-se vários tipos de projectistas. Um dos tipos é o dos “idiotas”, que são tipos que se centram logo em “ideias” que tinham vindo a alimentar. Há a projecção de ideias que se aplicarão e motorizarão todo o projecto, por vezes esquecendo as referências e situações específicas da própria encomenda. A projectação/criatividade é reduzida a uma sobre-expressão individual, imediata e impositiva, mal percebida, no sentido em que vê a encomenda como um álibi para materializar ideias. Seja qual for a encomenda projectual desenvolve essa ideia. Como um idiota...
Por outro lado também temos muitos do tipo descoberta - os descobridores, muito ao jeito português. Desenhas, muito e a partir do exercício do desenho descobres a solução. Em determinada medida pressupõe a possibilidade e genialidade do indivíduo não só de descobrir como identificar a descoberta como solução. Temos os idiotas e os descobridores. Ambos os tipos podem também ser questionáveis em certos aspectos. Ambas as posições têm senãos.
Têm uma coisa boa que é operarem por vezes resistências contra ideias mais pragmáticas da Arquitectura como mero serviço.
Lembro-me do Siza uma vez numa entrevista, em que estávamos a discutir sobre o pós-modernismo [o Siza é uma pessoa muito culta e com conhecimento amplo que inclui a Arquitectura mais recente, o que às vezes não passa muito no discurso que fabricam sobre ele], e de como a conversa foi importante para mim e para perceber a sua arquitectura. Estávamos a indagar sobre a questão da autoria [que é uma problemática moderna e pós-moderna], e ele dizia-me que o culto da autoria tem um benefício, pois avança uma espécie de resistência a uma Arquitectura genérica mais facilmente tipificável e mercantilizada. Eu concordo quando temos a felicidade de serem autores como ele.
B. Zão: É uma garantia.
G. Furtado: Se te referes a uma garantia de qualidade, é uma garantia no sentido de que quem procura algo associado a um nome, porque sabe o que é que ele faz, recebe mais desse produto. Mas num sentido mais amplo o que te contava visava remeter para a questão do que é a prática da Arquitectura na sociedade e a sua relação com o mundo económico e político... Penso que pode, entre outras posições, existir claro este tipo mais “autoral” de práticas de resistência a uma generalização/banalização da Arquitectura [movidas pelas forças do capitalismo tardio]. Podemos então ver algo de bom, nesta ideia de prática/autoria. A ideia de autoria, claro também pode remeter algo para a vertente de que falava, dos idiotas que têm umas ideias a materializar e etc. Mas há para além desse redutorismo há processos projectuais como em Siza capazes de atender a complexidade dos fenómenos presentes - aí a resposta envolve a dinâmica da ponderação de uma complexidade de factores.
Por outro lado, e votando à ideia da descoberta, essa também me parece que pode ser fonte de questionamento. Tem por vezes um problema quanto às ideias. Mas o processo criativo, claro também tem que ver com os a prioris. É inevitável que nós quando começamos um exercício projectual, nos projectemos e há coisas que marcam a condução do projecto. Nós não somos um lápis que vai descobrir de forma neutra umas coisas que respondem com o máximo de eficácia ao problema. Nós também projectamos algo daquilo que somos, consciente e inconscientemente; às vezes impomos ideias, e ao projectar situações e formas conformamos certas formas de habitar. [Em resumo, não nos podemos livrar de todo das nossas crenças por mais que queiramos. É mais ou menos inevitável que haja a prioris no nosso inconsciente, que sejam projectados quando conscientes de um processo criativo.]
Por outro lado, e para além da inevitabilidade da existência destes a prioris, também me parece que por vezes se associa e legitima a criação com um certo culto da genialidade do arquitecto. Há um grande equívoco dado que nós não deixamos de projectar aquilo que é cultural. Servimos frequentemente como instrumentos de reprodução daquilo que aprendemos na normalização académica, daquilo que vivemos e daquilo que nos chega pelos “média”. Portanto, por vezes mesmo esses arquitectos que tomados como únicos, excepcionais e geniais, não deixam de estar a revelar nada de original. Muitas vezes estão a reproduzir muitas coisas.
Enquanto os saltos da Arquitectura, os saltos epistemológicos especialmente, têm a ver com novos modos de pensar, fazer e criar. Penso que a palavra “criação” tem sentido aqui e mais a ver com isso. Não se trata de dizer que toda a criação do nada surge, mas penso eu que se avança algo inexistente. Frequentemente temos de socorrer-nos e basearmo-nos em coisas que existem, mas criar penso que não é meramente produzir e gerar coisas. Quando se olha para muitos desses arquitectos “excepcionais”, que se acha que estão realmente a avançar e a fazer coisas únicas e novas. Está-se muitas vezes equivocado. Temos de ter noção que é muito raro haver estes saltos epistemológicos e de que a criação é tanto um exercício exigente como um fenómeno complexo.
B. Zão: A proposta do Gehry foi anulada [para o Parque Meyer], lá está. Cativa mas não adianta nada [à Arquitectura].
G. Furtado: Aliás, naquele ensaio de que eu te falava, escrito há alguns anos sobre o que está por detrás do lápis [“behind the pencil”] abordo estas coisas que estamos a falar. Esse lápis não é um lápis completamente autónomo, e de resto a verdadeira capacidade da Arquitectura e do arquitecto falar [no sentido de afirmar coisas] é muito residual e circunstancial.
Em resumo, sobre o acto criativo no projecto de Arquitectura, sobre o que me questionavas começava logo por referir que é um acto raro, o de criar. Existem vários paradigmas, os idiotas, os descobridores e etc. Se falamos de criação temos logo de ponderar o que é que se quer dizer com criação e por outro lado o que é que envolve e está envolvido nessa criação. Por um lado não há uma solução encontrada projectualmente neutra, de formas; por outro lado esta projectação tem tanto de pessoal como de inscrição colectiva. […] Estás a ver... Estamos a falar de Psicologia...
B. Zão: Eu com esta resposta estava tentado a colocar um asterisco aqui na prova. É uma abordagem que ainda não tinha pensado para os meus desenvolvimentos.
G. Furtado: Espero não te estar a destabilizar.
B. Zão: Não. Está-me a clarificar [risos].
G. Furtado: Bem, e mais? Estávamos a falar de criação. Da transdisciplinaridade que é inevitável!
B. Zão: Das ferramentas. Do uso da experiência, pois é uma ferramenta virtual, mas depois há outras ferramentas como o desenho. Outra ferramenta é a maqueta, digamos novamente os AR.X, depois as ferramentas como o computador. Se podem influenciar o processo criativo como um desenho ou uma maqueta, mas que depois testam e inovam a partir no computador. Eu diria que os exemplos são o Gehry, o miolo do desenho dele costuma ser muito rigoroso e muito certinho e depois aquela festividade toda com os revestimentos e os materiais. Mas esse, essa casca depende muito do computador, só funciona a partir dessas novas tecnologias, só consegue pensar [com rigor, pré-visualizando] enquanto está a modelar no computador, por exemplo. Na Zaha Hadid também acho que acontece um bocado, faz os estudos em maqueta e as pinturas, mas é tudo posto à prova no computador. É o último teste, tal como a decisão em obra. Há sempre circunstâncias diferentes – ai as pendentes eram diferentes, vamos ter de resolver isto de outra forma, as cofragens não bateram certo, temos de fazer aqui qualquer coisa. E o computador também entra como um último recurso, como uma última ajuda. Eu acredito que há gabinetes que usam a ferramenta computador do princípio até ao fim, mas devem ser muito poucos. Sobre esse aspecto não tenho muito conhecimento. Para a realidade digamos, porque os utópicos usavam muito.
G. Furtado: O que é que eles te falaram sobre as maquetes, etc.
B. Zão: Tinha uma ideia, o atelier de santos, falei com o Pedro Machado Costa, tinha pensado que eles experimentavam bastante com maquetas, até porque eles têm uma série de projectos que sem a maqueta não conseguem comunicar. A maqueta tem dois pontos, um é o estudo e outro é a comunicação. A Arquitectura sem comunicar com o promotor não funciona. Então, fazer um esquiço que não é comunicável, obrigatoriamente parte-se para a maqueta para comunicar. Eu parti desse princípio que eles trabalhariam a maqueta como experimentação, mas ele disse que não, que usavam todas as ferramentas desde o desenho, maqueta e computador de igual forma, uniam tudo. No Siza vê-se que ele se dedica mais ao desenho, até porque as maquetas são mais de exposição, finais. […]
G. Furtado: O desenho e a maquete servem ou serviram para projectar e para representar. O acto de projectar é uma representação de várias ordens. […] O projecto desde logo é uma nebulosa que vai ganhando forma, e que está sempre a representar o próprio acto do projecto enquanto definição de uma resposta, formal ou outra. O projecto representa-se a si mesmo. Se se usa maquetes, ou não sei quê, não é tão relevante. No entanto não deixa de ser significativo que faças essa distinção. A discussão dos meios usados para representar é, em Arquitectura, histórica. Havia arquitectos que diziam que a maquete era uma manifestação enganosa. A questão remete para a verosimilhança presente na representação de realidade.
B. Zão: A maqueta mostra a forma mas não corresponde à estrutura. Não podemos cair nos erros da experimentação em maqueta. É fantástico, muito expressivo, mas depois a estrutura não funciona – a forma como o papel se cola, no betão já não funciona, por exemplo. Há discrepância entre as duas técnicas, as duas ferramentas. Há arquitectos que podem ter mais medo da maqueta por causa dessa situação.
G. Furtado: Depois há aquela coisa, que também é problemática... […] O Gombriche fala da forma como se vê a escultura.
B. Zão: Temos de nos movimentar para empreender a escultura toda.
G. Furtado: Sim. Vais apreendendo-a com a prioris, percepções parciais, criando uma imagem. Nesse sentido a discussão entre o 2D ou o 3D torna-a irrelevante e histórica. A discussão mais ampla do real vs virtual, etc., também é histórica. Eu acho que todos os meios são viáveis, e que há muitos mais para além desses. […] Que não é na questão do grau de verosimilhança figurativa que está a questão. Acredito que nós não vemos as representações, todos, da mesma maneira. Há uma tendência para a adjectivação e sofisticação das formas de representar. […] No entanto, há muitos equívocos e subjectividade quando estamos defronte a formas de representação dos objectos, e não é só pela ausência de informação. […]
B. Zão: Conseguimos construir um modelo tridimensional na cabeça.
G. Furtado: Eu iria mais longe. Será que construímos, todos, o modelo da mesma forma? Será que a nossa construção mental de um espaço é assim tão objectivável? […] Nós aprendemos de formas diferentes, e até o próprio tempo interfere. Eu acho que a representação é complexa. […] Não se trata só de reflectir sobre o desenho, eu acho que o projecto também se representa a si mesmo, e aí por diante.
B. Zão: A última fase, então, é o utilizador. É o cliente estar a usá-lo.
G. Furtado: Eu acho que as novas tecnologias colocam algumas questões, quanto ao utilizador. […] E então agora, passando para os instrumentos CAAD [“computational added architectural design”] de que te interessa que fale, claro que são uma ferramenta, mas muito provavelmente mais do que isso. Pegando na óptica de ferramenta, recordo como Butler falava da ideia de prótese, que eu acho que é produtiva para entender o que é a ferramenta. A ideia de prótese é a ideia de extensão das tuas capacidades, sejam elas físicas, mentais, etc. [é nesse sentido que as utilizas, que te estendes]. Uma régua estende as tuas capacidades de desenhar a direito. […] No sentido da ferramenta que estende as capacidades mentais, devemos buscar ferramentas que permitam compreender o projecto como um todo [superar a maquete]. […]
Façamos um parêntesis para pensar sobre o acto de criação... que restícios mantém de originalidade tal como de aleatoriedade. Como é que surge a criação e onde é que surge. Na criação há muitos elementos permanentemente em definição, diferenciação... competição, emergência... Muitos criadores no acto criativo estão a promover projecções. Interessaria mais a dinâmica de geração de resultados, sejam com desenhos, maquetes, esquiços, ou o que seja. De resto, relativamente por exemplo quanto ao desenho, há vários tipos e que são diferentes por várias razões. Vê também como se tem disseminado muito na última década uma ideia de projecto com parâmetros gráficos, etc.
B. Zão: Os diagramas.
G. Furtado: A ideia de projectar com números, vectores, quantidades. Estabelecer mais com o diagrama a performance, do que com a forma. E esta ideia do diagrama, não querer ser telegráfica, é mais de uma essência diferente. […] Assim, quando falávamos em trabalhar com maquetes, estamos a reduzir-nos a maquetes tradicionais muito concretas. As novas maquetes são disformes, no sentido em que a maquete não tem uma forma que possamos representar estaticamente. Com novas tecnologias de desenho e maquete, a forma vem de acordo com o projecto, etc. Neste suporte de projecto, nós estamos sempre a pensar/projectar uma solução que inclusive pode deixar de ser única e determinista. Não ser um momento estático, como acontecia muito no desenho e maquete.
É possível pensar em elementos de representação dinâmicos, um diagrama ou então uma maquete dinâmica - absorvendo todos os aspectos possíveis. Por exemplo, numa Arquitectura indeterminada, informal, podem-se incluir várias dimensões: programática, tipológica, estrutural, construtiva, etc. Com o apoio das tecnologias da informação e comunicação. Como é óbvio, trata-se também de novos modos de expressar e exponenciar um paradigma de incerteza. Já não estamos a expressar uma coisa fechada, concreta - tendemos a projectar possibilidades. Interessa-me sobretudo esquemas, diagramas, que incluam parâmetros de real impacto como o cliente poder intervir constantemente, ou a ponderação de sustentabilidade e ecologia. Falo de uma Arquitectura reactiva capaz de se adaptar em qualquer momento. Trata-se de algo que questiona a nossa ideia normalizada de ordem e a nossa forma de pensar/comunicar, de criar.
Começamos com a discussão do que é uma ferramenta e o que é representar, das incursões/implicações históricas da maquete e do desenho. Na Arquitectura privilegiam alguns instrumentos porque têm de “representar” uma determinada “lógica”. Se a “lógica” variar, os processos também variam e vice-versa. Recordo por exemplo que o instrumento do desenho tem significado na ascensão social do arquitecto. Trata-se da relação entre o arquitecto e o mestre da obra, e que toca toda a comunidade envolvida na edificação. […] Os arquitectos possuíam os moldes e escondiam dos outros...
B. Zão: Tinham erros. O Leonardo da Vinci representava com erros para que quem o roubasse não percebesse, e para si depois corrigia.
G. Furtado: Quando alguém dentro da obra centra o domínio deste processo chave – o desenho – e que confere a capacidade de ver a priori, como o edifício será e pode ser feito, ele passa a dominar a construção. Consegue representá-lo, mostrá-lo ao cliente e assegurar a sua execução. […] Recentemente está a pôr-se a questão sobre o que acontecerá ao arquitecto. A figura do arquitecto, definida historicamente, nesta relação entre o projecto e a construção continuará a diferenciar-se com os instrumentos intelectuais que ele detém. Eu acho que também te pode interessar, mais do que saber como é que é usado [desenho e maquete], quando é que é usado, é o facto de estarmos a falar de meios que possibilitam extensões e que se circunscrevem dentro de uma realidade histórica.
Será que daqui a uns anos vamos trabalhar sobre uma projecção [holografia, etc.]? Eu acho que o arquitecto não desaparece, mas que os novos meios nos enriquecem, e de certa forma nos estão a estender para outros campos [infelizmente estes meios são percepcionados e usados de outra forma].
Quais foram as respostas que te deram outros? [perguntas a arquitectos sobre o processo criativo]
B. Zão: Pois, as respostas. Comuniquei com três arquitectos: o Brandão [Nuno Brandão Costa] foi para fora durante um mês – tinha a pergunta sobre o desenho. Sobre as maquetas tenho a do AR.X [Nuno Mateus] e depois mandei a mesma questão ao Pedro Costa [a.s* atelier de santos]. Ele foi muito directo [Pedro Costa], há imensas ferramentas e ele usa todas por igual, pois para ele não depende disso.
G. Furtado: Eu acho que é frequente encontrarmos pessoas que usam mais o desenho do que uma maquete, porque as suas naturezas são diferentes. Mesmo no que respeita ao grau de figurabilidade, ou de ser mais ou menos conceptual, eles variam. Relativamente ao meu desenho consegues ver a matéria e a forma caótica simultaneamente tal como as problemáticas a responder. E o mesmo acontece com as maquetes tridimensionais. Há maquetes feitas quando não há forma, que procuram expressar problemáticas, etc.
B. Zão: O desenho e a maqueta são aqueles mais imediatos. Desenhar o contorno do terreno, construir o terreno, pegar numa plasticina ou meter cubinhos de esferovite é completamente diferente. Tem a ver com a atitude para cada um dos casos. Não sei se com o computador se consegue fazer isso. Se consegue colocar um terreno no computador e depois começar a levantar linhas livremente.
G. Furtado: É mais do que isso...
B. Zão: Eu ainda não consegui assegurar bem esta parte do computador.
G. Furtado: Uma coisa é a ideia de projecto assistido por computador, mais reduzida a mera ideia de ferramenta. […] Outra ideia é a metodológica que mais me interessa. Há aqui um novo paradigma, ou pelo menos promete haver aqui um novo paradigma. […] A nova plataforma, com o CAD-CAM, determinados programas, determinados interfaces, tanto de input como de output, devem entender-se mais ao nível metodológico do que ao nível instrumental. Por várias razões. E que não têm nada a ver com o que normalmente se privilegia - isto é, normalmente usam-se computadores para ter mais eficácia, precisão de desenho ou serem mais rápidos e se poder reutilizar coisas, oferecendo mais rentabilidade. Será mais benéfico se forem entendidas metodologicamente. Elas oferecem de facto um conjunto de meios que podem ajudar em todo o processo criativo, a exteriorizar e a procriar rápido, etc. E alguns desses programas têm mesmo alguma autonomia/inteligência artificial [passo a “existência” dessa noção]. Mas eu falaria sobretudo em parceiros de projecto, do tipo: se usar estes componentes vai implicar que esta janela custe “x” e a manutenção e custo daqui a dez anos levará à falência do edifício. Ele pode-se lembrar de coisas que nos podem ajudar, e cruzá-las de acordo com a lógica geométrica ou outras [num contexto mais espanhol falariam em genética, num contexto mais anglo-saxónico em paramétrica]. Isso pressupõe um abandono da ideia de que te estão a pedir uma solução clínica, privilegiando a experimentação. Ou seja, abre-se a dinâmica de incluir inúmeros parâmetros e a possibilidades de cruzar alternativas. Por vezes pode contradizer-te e dizer quais são as consequências do que estás a criar. Tu vais operando sobre e de acordo com alguns parâmetros que delimitam a evolução do processo criativo e ele vai restringir o resultado de acordo com as condições que tu vais delimitando. O que se chama paramétrico é também muitas vezes entendido como: a possibilidade de oferecer enquanto está a desenhar, todos os outros elementos necessários ao projecto, como orçamentação, temporização da construção em obra, etc., permitindo que tu te concentres na própria criação [dá-te automaticamente as consequência das tuas escolhas, em termos de dinheiro, tempo, etc.]. Por exemplo relativamente ao dinheiro claro que sempre vais ponderando, mas normalmente delegas aos orçamentistas, ou então não te apercebes com exactidão no momento. Não quer dizer que agora não tenhas de te preocupar com essas coisas enquanto estás a desenhar, porque tens outros “agentes arquitectos digitais” a fazer o resto do trabalho. Quando estás a desenhar poderás de uma forma mais automática saber qual é a consequência da tal janela. É um parceiro de projecto, dentro da tua metodologia! Este é o entendimento mais pragmático de um dos benefícios por exemplo de um dos tipos de paramétrico. Um outro aspecto interessante das novas ferramentas e sistemas de projecto tem a ver com a indistinção entre a concepção, produção e experiência. Falávamos das novas tecnologias facilitando o pensamento e a aferição das suas consequências, mas podemos falar também da facilitação interacção do projecto com as próprias forças da produção e da experiência. Isto é, com os CAD-CAM, quando estás a desenhar estás também a desenhar os parâmetros de fabrico, transporte, montagem. Já vai codificado no próprio desenho. Isto parece-me interessante, pois demonstra que o CAD não fomenta só o formalismo de imagética computacional. Em oposição com essa crítica redutora, eu penso que o domínio de algumas destas ferramentas desprivilegia os interesses formalistas e permite o contacto com o mundo concreto da realidade arquitectónica.
Mais do que isso, é imprescindível dominar estas ferramentas. Falamos de uma realidade em que haverá uma espécie de meta modelo em que se incorpora tanto as dimensões do desenho, como da construção. Pode também ser experimentado multi-sensorialmente em realidade virtual. Portanto, há aqui um colapso temporal; tu estás a desenhar e também estás a experienciar. [No início do processo projectual tens uma coisa disforme e ao longo do projecto, algo mais definido.] Este colapso diz respeito tanto à aproximação do projecto à construção [com os CAD-CAM], como do projecto com a experiência [com os simuladores da realidade virtual]. Em suma: o colapso destas três fases aproxima a criação da produção, da experiência. Por outro lado, como referi, contraria aquela crítica do uso do CAD privilegiar a imagem e formalismo. De resto esquece-se como se vai trabalhar com essas e outras tecnologias, que estão a sustentar a vida da nossa sociedade da informação.
A produção da Arquitectura vai passar muito por essas ferramentas [de várias formas e suscitando várias abordagens], e ao passar muito por elas, o processo de projecto e construção [de que estava a falar] centra-se num modelo. Não se baseia na mera ideia de desenhos Autocad, impressos em folhas de papel e raramente destinados a construir ideias. O modelo incorpora não só a forma como quase todas as dimensões e elementos envolvidos no projecto e sua construção. Quem tiver capacidade para dominar esse modelo, [e eu tenho a certeza que esse modelo vai de encontro a muitas áreas – o cliente, o financiador, o arquitecto, os engenheiros, os construtores, as fiscalizações, os aspectos legais, tudo.] controla a qualidade da Arquitectura. Resta saber quem é que vai dominar esse modelo e, como corolário, o mundo do fazer Arquitectura. Se os arquitectos querem continuar a trabalhar exclusivamente como têm trabalhado até agora - fora dos sistemas de computação, dos fenómenos generativos paramétricos, etc. - arriscam-se a perder a possibilidade de ter algum controlo sobre o modelo para onde irá convergir uma grande parte do projecto. Estamos pois a falar de coisas muito sérias e não só da possibilidade de produzir formas e imagens. Estamos a falar do próprio status social e do papel do arquitecto em equipas transdisciplinares – um status e papel – que se tem envolvido historicamente na prática da construção e da Arquitectura em geral. Estás a ver a ideia do modelo? Eu não estou pois a falar de meramente imprimir desenhos CAD e de ser mais eficaz. Isso para mim não é o mais importante. Este sistema de projecto de Arquitectura promete colapsar fases do fazer e viver Arquitectura tal como muitas noções que subsistem do que é o arquitecto, na sua atitude e de que tipo de coordenadores será.
B. Zão: Eu acho que está respondido.
G. Furtado: Eu acho que a prática com este tipo de ferramentas e a ideia de modelo, tem pouco a ver com as comuns ideias redutoras de projecto, mas sim uma ideia mais densa de o que é que envolve um projecto. Isso não deixa de pressentir o culto de certos apogeus. Mas o apogeu de qualquer ferramenta favorecerá o discurso sobre novas outras. […]
Os parâmetros/ideias são catalogados e transferidos por alguém para esse modelo, e a criatividade nessa estrutura resulta na obra, ela própria não estática. Mas quem é que vai coordenar o modelo? O engenheiro de sistemas, ou o próprio cliente, ou o construtor, ou o arquitecto? É um sistema de muitos inputs e nós, arquitectos, devemos desde já trabalhar directamente com esse modelo, nunca perdendo a nossa especificidade de inclusive definir a forma. Se o fizermos mantemos alguma capacidade de influenciar o projecto e sua materialização e performance absorvendo o controlo de muitos aspectos e parâmetros que ficam sujeitos a poderes de decisão.
O domínio desse modelo é a capacidade de controlar a própria qualidade da Arquitectura. É isso que está em causa.
B. Zão: Esta resposta é tão deliciosa que eu nem tenho coragem de a usar. [risos]
G. Furtado: Eu acho que o que eu te queria partilhar com esta conversa é que eu acho que a ideia [o tema da tua dissertação] é muito interessante mas parece-me que em alguns aspectos da segunda parte estás a usar uma óptica convencional de prática de projecto pela prática do desenho, e acho que podemos ir além disso.
Começava logo por questionar o que é a representação. Constatas que há estes tipos de personalidade nos desenhos de projecto e nos edifícios resultantes. Mas o que é que significa falar disso? As consequências disso? Como é que o projecto acontece na sociedade e como é que a Arquitectura o opera. Há bocado estavas a dizer uma coisa que eu achei muito interessante, que é não haver esquizofrenia na prática da Arquitectura por ser psicótico/disfuncional, havendo no entanto muitos mais estados, mais viáveis – os neuróticos. Às vezes têm resultados muito interessantes, mas no caso da Arquitectura isso tem de ser controlado. Porque a Arquitectura tem uma presença social e tem consequências de grande seriedade.
B. Zão: A esquizofrenia é um caso autista. É um mundo paralelo, disfuncional.
G. Furtado: Mas partilhado colectivamente: não é fora do ambiente, porque, quem é que é o louco? São os que estão internados ou os que estão cá fora?
B. Zão: O Erasmo perguntava o mesmo. Dizia que o louco era o que tinha as respostas todas. [risos]
Mas isso já é outra prova.
G. Furtado: Acho que podes ainda avançar além daquilo que já está feito. Abrir e lançar hipóteses, ver como o teu modelo se pode desenvolver e protegê-lo contra críticas. Podias ter em conta estas opiniões que estávamos a discutir, relativamente a alguns momentos do teu trabalho em futuros desenvolvimentos. Estás a discutir representação dentro dos moldes como ela é tradicionalmente praticada no projecto de Arquitectura. Eu acho que a análise pode ser mais profunda e depois tornar-se também operativa, crítica, prepositiva, no sentido de: eu estou a analisar esta prática que é assim, as consequências desta prática são estas e de acordo com esta investigação as minhas propostas podem ser estas.
B. Zão: Faz todo o sentido. Eu estava-me a limitar imenso nessa parte [processo criativo], apesar de eu já estar cansado para manter os olhos abertos. [risos]
G. Furtado: Calculo que projectas e sabes que estas coisas não são assim. Discutir onde é que se usa o desenho ou a maquete parece-me redutor.
B. Zão: O meu objectivo inicial era a intensidade. Quais são aqueles que se dedicam mesmo ao desenho.
G. Furtado: Saber que percentagem de pessoas é que usam mais desenho ou maquete?
B. Zão: Era mais, quais as consequências, quase.
G. Furtado: O que é que interessa se algum usa mais a maquete?
B. Zão: Sim, por exemplo. Os AR.X usam e experimentam imenso na maquete. Se podemos ver nas obras deles um resultado final de acordo com isso e completamente diferente, por exemplo, das do Siza. Tentar distinguir uma e outra, os resultados.
As Atitudes Criativas, que se encontram fora do estado patológico e do normal, que estão no limiar, trazem resultados. Toda agente tem um lado obsessivo, histriónico, fóbico. Mas no final temos apenas dois, três parâmetros. Os casos patológicos já têm vários, oito, dez. Por isso, o resultado final é que divide e marca a demonstração desse estado.
No desenho também se distingue, acredito eu que poderá. Vendo os exercícios de uma pessoa que se dedica ao desenho, pode acabar por produzir uma obra diferente de uma que se dedica à maquete.
G. Furtado: Não acredito que seja assim tão linear.
B. Zão: Era esse estudo que eu queria fazer nessa parte, no início. Só que não sei.
G. Furtado: Toda a gente usa vários métodos. Tu também, pelo que sei, escreves romances e pretendes desenvolver um filme.
B. Zão: Eu desenho, mas se experimentasse muito em maquete não sei se chegaria àquela forma.
G. Furtado: Por exemplo no caso dos computadores há pessoas que chamam erradamente modelo ao mero desenho 3D. Quando falo de modelo estou a falar de coisas mais complexas. Está muita coisa lá dentro. Uma das possibilidades é claro experimentar em 3D. […]
A tua ideia de desenho e de maquete também se dilui, na ideia de modelo.
O que me parece é que há pessoal que tem mais afinidade para determinado tipo de representação, seja desenho ou maquete, etc., e o resultado pode ser mais ou menos afectado pela intensidade do uso. Por outro lado também acho que estás a associar muito directamente a ideia de projecto à ideia de processo criativo. O projecto é uma coisa mais ampla e dentro dela há uma dimensão criativa, mas o projecto envolve um monte de coisas, não envolve só criação. A tua questão centra-se se dentro do projecto utilizar determinados tipos de representação pode condicionar um resultado. Na análise da tua dissertação, penso que tens de trabalhar como um cientista. Tens de criar uma premissa para fazer uma experiência, mas a premissa parece-me ainda que tem de ser fortalecida. [risos] O facto de ires perguntar a alguém se ele usa mais ou menos, não te dá um universo de análise de onde possas tirar conclusões.
Numa conclusão, terias de dizer: parece-me que, dentro do universo dos arquitectos que analiso como casos de estudo, eles gostam mais de utilizar maquetes. Em alguns desses casos, o uso privilegiado de maquetes tem algum reflexo na construção, mas há uma excepção em que há um tipo que nem sequer usa maquete e cujos edifícios são de grande complexidade. [risos] Agora, extrapolar e dizer: a criação em Arquitectura com o uso do desenho e da maquete, etc., leva a “x” fora do universo de casos de estudo, parece-me muito arriscado.
Sobre esta segunda parte, em suma, eu acho a primeira parte da dissertação interessante, mas sobre esta segunda podias alterar e enriquecer alguns aspectos. Potencia e enriquece, mas a que grau? Depende de o que é que estamos a falar. O computador na prática do processo. Mas que computador? Quais programas?
A minha opinião é que há um entendimento redutor da sua dimensão epistemológica. Não são ferramentas e levantam questões que estão para além das questões comezinhas que normalmente as pessoas insistem em referir. Estamos a falar da prática da Arquitectura e estamos a falar da prática do projecto em si, para além da prática da criação. Estamos a falar de como é que a Arquitectura opera na sociedade e talvez da oportunidade de ela continuar a ser relevante. Tentei dar algumas ideias de que há um colapso, realmente, de o que é um projecto, a construção, a experiência. Tentei também dar alguns exemplos usando vocabulário usado, etc.
B. Zão: E foi uma excelente ajuda.
G. Furtado: Espero que sim, mas isto é só mais uma opinião. Parabéns pela tua investigação.
B. Zão: Muito obrigado, pelo tempo e disponibilidade.

[total: 67 minutos e 15 segundos]


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